Microviolências de gênero = Micromachismos = Machismo cotidiano?

Marília Saldanha
6 min readMar 5, 2021

Diante da expressão microviolências de gênero é comum que pessoas que não estejam tão por dentro das discussões dos estudos de gênero, pensem que estamos tratando de violências ‘inofensivas’. Provavelmente por causa do prefixo micro, que significa pequeno e é usado na nossa língua portuguesa quando nos referimos a algo muito pequeno.

Trago um exemplo para de imediato, chegarmos num ponto.

Se entrarmos numa sala e ao acendermos a luz, localizarmos um escorpião sobre a mesa na sua menor versão de 1,2 cm, será que nossa tranquilidade permanecerá a mesma? Sabemos que ele pode ser venenoso, nos picar e isto é o bastante para que tenhamos medo do pequeno animal. Mais do que o tamanho, o que é perturbador é seu potencial de nos ferir e com isto produzir danos mortais, inclusive.

Comecemos esta conversa com esta consciência.

Tal qual um pequeno escorpião, as microviolências de gênero podem nos envenenar no curto, médio e longo prazo. E para elas não há antídotos seguros ainda.

Diferente do escorpião visível sobre a mesa, elas podem passar despercebidas e nos intoxicar lentamente ao longo de uma vida ao ponto de baixarem nossa autoestima em um nível de alerta vermelho.

O fato destas violências serem nomeadas de micro, tem a ver com sua intrínseca invisibilidade. Enquanto violências psicológicas, são impalpáveis e podem constituir relacionamentos abusivos que resultam em feminicídio.

As microviolências por não serem explícitas, passam escamoteadas em meio à falas jocosas carregadas de discriminações sexistas e que se encontram naturalizadas na cultura.

Porque de gênero?

O termo gênero situa a natureza destas violências e indica que elas vêm imbricadas nas relações de poder entre homens e mulheres. As violências podem ocorrer intragênero, ou seja, nas relações entre mulheres e nas relações entre homens. No entanto, seguiremos nos debruçando nas relações mais desiguais, entre mulheres e homens.

Mas quem são estas mulheres e quem são estes homens?

As mulheres em toda sua diversidade podem ser alvo (e também agentes, mais raramente, mas não falaremos disto neste texto)

podem ser negras, pardas, amarelas, indígenas e brancas. De qualquer idade, classe social, naturalidade, nacionalidade, orientação sexual ou identidade de gênero, com ou sem alguma deficiência de qualquer ordem e com qualquer nível de instrução escolar. Se eliminarmos boa parte dos marcadores sociais de privilégio no caso de uma mulher, por exemplo, branca, heterossexual, de classe alta, com instrução escolar elevada, nacionalidade norte-americana teremos ao fim o gênero. E no caso das mulheres, este marcador basta para que ela seja alvo dos micromachismos.

Os homens em toda sua diversidade podem ser os agentes (e também alvo, mais raramente, mas não falaremos disto neste texto).

A Simone de Beauvoir tem uma frase num de seus volumes do O Segundo sexo que nunca esqueci:

“o homem mais medíocre se sente um semideus diante de uma mulher”.

Então, qualquer homem minimamente machista, em qualquer circunstância poderá cometer uma das diversas microviolências.

E os micromachismos?

Podemos afirmar que este é um outro termo sinônimo para as microviolências. E ele se encontra legitimado enquanto verbete na Academia Brasileira de Letras.

Estas palavras servem para nomear fenômenos.

Nomeamos e também problematizamos estas nomeações, que nem sempre são precisas e podem gerar entendimentos equivocados. As pesquisadoras que preferem dizer machismos cotidianos explicam sua posição:

“Catalina Ruiz-Navarro, ativista e colunista colombiana, não gosta da palavra porque faz parecer que ‘são inofensivos. Não faz sentido distinguir entre micromachismos e o machismo propriamente dito’. A socióloga Laura Aguirre diz que ‘é uma violência quotidiana que nós, mulheres, sofremos e que é desvalorizada’. Ambas as autoras preferem chamar-lhe ‘machismo quotidiano’. (em verbete micromachismos, ABL)

A variedade de expressões favorece por outro lado, um alcance maior de compreensões a partir do momento em que para falar de uma em comparação à outra, seguimos desdobrando os acontecimentos sociais e localizando as violências disfarçadas de brincadeiras que desqualificam as mulheres em seus posicionamentos no mundo. Nenhuma violência é bem-vinda e elas têm que ser denunciadas diretamente para que seus danos perversos não continuem tendo seu efeito na formação de meninas e mulheres.

Estes termos sobre os quais refletimos são termos guarda-chuvas para pelo menos uma meia-dúzia de microviolências encarnadas em atitudes aparentemente banais, exercidas pelos homens em relação às mulheres.

As microviolências invadem o espaço cognitivo das mulheres

Manterrupting (homens interrompem)

Interrompem a fala delas e assim as deslegitimam em situações de trabalho, de entrevista ou mesmo nas relações familiares na intimidade do lar.

Mansplanning (homens explicam)

uma explicação que é dada para incrementar o que já foi dito pela mulher como se ela não soubesse o suficiente, mesmo em situações em que ela é autoridade no assunto.

Histórias de mansplanning

Fui aplicar medicação em casa no meu tio, e ele veio me ensinar como preparar a medicação, logo eu, enfermeira.

O marido da minha mãe precisava arrumar a parede do banheiro e foi me explicar passo a passo a maneira certa de assentar o piso na argamassa logo eu, técnica em edificações.

Meu tio me explicou a sensação de um bebê mexendo na barriga, logo eu que estava grávida.

Gasligthing (tradução literal: luz à gás) (tradução livre: manipulando)

Referência ao filme de mesmo nome protagonizado por Ingrid Bergman em 1944. Nele a personagem sofre manipulação por parte do marido que tenta fazê-la pensar que está enlouquecendo. Nas relações, o comportamento manipulador é praticado pelo homem que não valida a percepção da companheira levando-a achar que está equivocada, enlouquecendo, fazendo-a duvidar de si mesma, de seu raciocínio, de suas memórias, de seu senso de realidade. Frases tais como: “você está louca” “você está vendo coisa onde não há” são comumente usadas.

Bropriating — se apropriando

Quando o homem se apropria de uma ideia já expressa ou um projeto anteriormente realizado por uma mulher levando os créditos por ela. Comum em ambientes de trabalho, mas não somente. O fato de mulheres serem menos ouvidas em momentos de decisão, faz com que as mesmas sejam desacreditadas, ocupando menos cargos de liderança nas empresas já que suas ideias servem de trampolim para os homens. Produz obstáculos no caminho profissional das mulheres. A educação de gênero tradicional forja as meninas para que se tornem adultas gentis, bem-comportadas, suaves, delicadas. O seu repertório mais agressivo no sentido de tomar iniciativas é reprimido ao longo do desenvolvimento pessoal, o que as deixa podadas para exercerem a assertividade e se mostrarem auto-confiantes. Quando o fazem são rotuladas de masculinizadas, o que em si não é um problema. Há mulheres masculinizadas e esta é uma possibilidade de ser. Mas o tom da categorização é pejorativo, e é usado como freio para os avanços das mulheres.

História de bropriating

Mulher e marido recebem amigos pela primeira vez em sua casa. Em meio à reunião, marido se anima com as pessoas em torno de si e conta sua saga para adquirir a linda casa em questão. No entanto, ele sonega a informação mais importante, a proprietária daquela residência era sua companheira, ali estupefata sentada num banquinho, ouvindo suas bravatas. Ela pesquisou, negociou, comprou com seus próprios recursos e decorou a casa em que viviam. Além disso sustentava todos os gastos relacionados ao campo doméstico, era a provedora principal. Repito: a provedora principal. Ele era responsável apenas pelo hobby do casal.

Podemos perceber que as microviolências de gênero acontecem nas diversas interações, entre mulheres e homens, seja no espaço privado, seja no espaço público. Na dinâmica relacional de casais, trisais, nas amizades e também em grupos diversos.

Estes atos desrespeitam e deslegitimam as mulheres e seus feitos. Reconhecê-los é o primeiro passo para combater seus efeitos e tentar evitar sua perpetuação.

Respiremos!

Este tema oprime. Mas a luta, a resistência e o enfrentamento são libertadores e necessários. Refletir e produzir conhecimento pode ajudar na compreensão e elaboração das experiências, nossas e de outras.

Chegamos ao fim deste microtexto que se aproximou de um tema amplo e inesgotável. Há muito mais a dizer. E diremos. Continuaremos a dizer, em alto e bom som, até não ser mais preciso.

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Marília Saldanha

Mestra e Doutora em Psicologia Social com viés feminista. Escritos sobre relações de gênero e cotidiano. Contato profissional: mariliasaldanha50@gmail.com