AVISO de gatilho emocional: violências psicológicas contra as mulheres

Marília Saldanha
7 min readMar 21, 2021

--

Quando pensamos em relacionamentos entre mulheres e homens, nos deixando guiar pelos papeis de gênero tradicionais, é possível que pensemos que a virilidade masculina leve certos homens, não todos evidentemente, a (tentar) dominar na base da violência física. Não estaremos de todo equivocadas já que muitas pesquisas e mapas da violência (Flacso) demonstram exatamente isto. No entanto, os homens em relações de gênero violentas (e não somente nas mais severas) também lançam mão de violências psicológicas com bastante propriedade, rompendo o estereótipo de que somente as mulheres sabem manipular e ter crises histéricas por meio de gritos, choros e verborragia.

Lamentavelmente precisamos falar das misérias emocionais que nos levam para regiões sombrias onde o desamor impera.

Os estereótipos de gênero colocam as feminilidades e as masculinidades em caixinhas, de modo que crescemos seguindo prescrições sociais da educação de gênero tradicional sobre como performar o gênero ao qual fazemos parte. E nós mulheres somos convocadas a sermos dóceis e bem comportadas, há um bom tempo na história da humanidade. O par, mulheres dóceis versus homens viris, ainda vigora nas diversas sociedades, mundo afora, embora outras narrativas estejam bem presentes afirmando a diversidade que borra estas fronteiras binárias. Ainda bem que há junções de forças que se opõem ao binarismo clássico e que nos ajudam a ampliar novas noções sobre relações de gênero.

Vamos falar sobre as violências psicológicas nas relações desiguais?

(Sim, homens sabem ser abusivos) (Sim, mulheres sabem ser abusivas)

— — — — — — — — — (Ainda assim, há desigualdades) — — — — — —

Quando falamos em violências psicológicas podemos começar primeiro caracterizando-as e e nos apoiando em um conceito, em segundo, explicando seus modos de expressão, e em terceiro os seus efeitos danosos. E é isto que faremos aqui.

Mas antes, contextualizemos.

Enfatizamos que pessoas, independente dos seus marcadores sociais de diferença, cometem violências psicológicas em alguma medida, assim como se tornam alvo das mesmas. Então, de uma certa forma, este texto é para todo mundo. Há no entanto, relações humanas que são mais desiguais que outras, porque vivemos em sociedades que agem de modo sexista, racista, classista e homo-bi-trans-lesbofóbica e a brasileira não é diferente. Estas sociedades hierarquizam as pessoas, os grupos e as relações. Na pirâmide social, os homens heterossexuais, brancos, classe média-alta ocupam a ponta, lá no alto, gozando de muitos privilégios e todas as demais figuras humanas ficam abaixo em importância. Isto confere às relações entre homens e mulheres uma assimetria de poder, por isto falamos em desigualdades de gênero.

Isto posto, perguntamos:

Se as violências psicológicas são impalpáveis e invisíveis como detectá-las e reconhecê-las?

Esta é a característica principal que torna as violências psis mais problemáticas e pouco valorizadas nas delegacias das mulheres e centros de referência para mulheres em situação de violência. Suas feridas e efeitos são diferentes da concretude de uma violência física que (nem sempre) deixa marcas no corpo. Elas atingem nosso espaço cognitivo, nossa mente e isto pode ter consequências somáticas. Embora não tenham substância, as violências psicológicas, podem sim, ser percebidas e localizadas em atitudes que serão melhor descritas à frente.

Um conceito

As violências psicológicas são atos invasivos e limitadores que ferem subjetivamente a pessoa que é alvo delas. A pesquisadora Krista Burlae (2004) autora da Teoria do Espaço Consciente nos apresenta três espaços que abrigam o Eu: o corpo (território pessoal), em torno do corpo e o espaço cognitivo (mental). Segundo ela, violência é a violação de algum ou de todos estes espaços. Ela diz ainda que isto pode se dar pelo modo invasivo e-ou pelo modo cativeiro.

Modos de expressão

Embora invisíveis, as violências psicológicas são perceptíveis. Elas estão presentes na linguagem não-verbal:

No gesto: do dedo em riste, na pegada do queixo. No tom de voz: dos sussurros obscenos nas ruas, ao grito dentro de casa. Nos olhares: de crítica, avaliativos, de deboche, de reprovação. No silêncio perturbador: na expressão facial agressiva que tenta intimidar.

Nos toques não consentidos no corpo: enlaçar a cintura, passar a mão na bunda, nos seios, nas pernas, abraços.

Elas estão presentes na linguagem verbal:

Nos insultos: vagabunda, vadia, burra, louca, feia, fraca, infeliz. Em frases que desqualificam os papeis tradicionais de mãe e dona de casa. Elas estão escondidas no ciúme e na brincadeira sarcástica (piadas). Elas estão presentes nos diversos modos de ameaçar (de separar-se, de espancar, de matar, de se matar, de envenenar os filhos).

Na manipulação, na humilhação.

No isolamento social - no ato de proibir de estudar, viajar ou de falar com amigos e parentes, ou seja, na limitação do direito de ir e vir até o mais grave, cárcere privado.

Na tentativa de submeter o outro às suas vontades e caprichos, na opressão.

No controle da sexualidade, nas desconfianças paranoides, na imposição autoritária, na desqualificação da inteligência, do modo de pensar e se posicionar, no silenciamento, na indiferença, na demonstração de impaciência ou desatenção.

Elas estão no ato da vigilância constante, na perseguição contumaz, na chantagem emocional, na culpabilização, nas diversas formas de exploração do outro.

Elas se explicitam, na tentativa de ridicularizar, de tirar a liberdade de crença.

Adendo -

As linguagens mencionadas podem estar juntas. Um gesto pode estar despido de fala, mas a fala carrega alguma expressão facial e corporal. Tanto a linguagem não-verbal quanto a verbal estão impregnadas de emoções em todo seu espectro de gradações.

Efeitos

Voltando à Teoria do Espaço Consciente, quando os espaços do corpo são invadidos e cerceados repetidas vezes, as mulheres começam a entrar em estado de alerta. Dependendo da frequência e da intensidade a que as mulheres se veem expostas a estas violências, podem experimentar num estágio mais avançado a dissolução de sua integridade emocional. A saúde psicológica, a autodeterminação e o desenvolvimento pessoal são impactadas. As violências psicológicas podem gerar:

Sentimentos duradouros de incapacidade: crença de que é incapaz de ter sucesso na vida. Dúvidas sobre sua capacidade intelectual. Sentimentos de inferioridade em relação ao companheiro; Sensação de opressão; Perda do ânimo diante da vida; Sentimento de culpa pelas discussões e pelos problemas na relação; Vergonha — necessidade de esconder de amigos e parentes, as experiências de violência ou justificar certos comportamentos do parceiro.

Fragmentos de histórias que contêm violências psis

Atendi mais de duzentas mulheres no Centro de Referência para mulheres em situação de violência-Patrícia Esber onde trabalhei entre 2012-2013. Foram inúmeros relatos que ouvi delas. Seguem alguns fragmentos de histórias, com nomes fictícios para preservar as identidades das pessoas.

Ameaça não-verbal

Certa vez Magda me relatou que havia conhecido um homem com quem teve um relacionamento. Numa dada ocasião ela estava no banho e ele entrou no banheiro. Ela estranhou (e se assustou) porque ele estava com uma faca com a qual dava batidelas na palma da mão. Disse-me que ele agiu naturalmente, conversou amenidades e saiu. Ela não sentiu-se bem com aquele gesto, mas esqueceu. Tempos depois estava às voltas com problemas de violência doméstica.

Ameaça verbal

Dalila era casada com um sujeito que ameaçava matá-la e jogar seu corpo no rio. Havia um riacho nas proximidades. Ele também ameaçava envenenar as crianças. Ela não conseguia dormir direito desde então.

Ameaça não-verbal

Lia me contou que o marido dormia com uma faca debaixo do travesseiro.

Gesto simbólico e concreto

Paula conseguiu separar-se. Ela deixou o sujeito no apartamento e combinou com ele que voltaria dias depois, a tempo dele fazer as malas. Quando ela voltou, conforme o combinado, a casa estava sem a presença dele. Para surpresa de Paula, carnes, ovos, frutas e sabão em pó estavam jogados e espalhados pelo chão. O cheiro fétido impregnava o ar.

Ameaça verbal

Luiza era ameaçada constantemente pelo companheiro. Ele anunciava que um dia iria atear fogo na casa. Detalhe: ia trancar-se com toda família dentro.

Desconfiança paranoide

Suzana sentia-se com a auto-estima no chão e não entendia porque o marido duvidava insistentemente de sua fidelidade sexual. Ela apontava para si própria e me perguntava: Quem vai me querer assim ?

Gestos simbólicos e concretos

Janaína tinha um filho com Mário. Mário tinha ataques de fúria dentro de casa. Às vezes levantava a toalha da mesa e derrubava copos, pratos e tudo o mais que estivesse sobre esta. Certa vez atirou o berço da criança pela janela. O menininho de três anos perguntou à mãe: o papai não gosta de mim não, né mamãe?

Este tema é indigesto, não? Pede um respiro. O girassol é uma flor potente, então eu a trouxe para que possamos finalizar este ensaio de modo mais luminoso. Sugiro que vejam o filme Custódia, mas aviso que esta crítica do link dá spoiler. É um filmaço francês do Festival Varilux de 2018, onde a questão da violência doméstica é central.

Este tema que discuti não se esgota. Leiam os ensaios que escrevi. Há mais que estão porvir. Precisamos continuar produzindo conhecimento (já acessaram minha tese?) sobre as violências contra as mulheres. Precisamos continuar disseminando possibilidades de encontro das mulheres consigo mesmas e com a sororidade mundial. Suas experiências precisam ser validadas. Há que cuidarmos dos traumas já criados pelas relações abusivas, enquanto simultaneamente construímos modos de preveni-las.

Estejamos atentas, busquemos ajuda, violência contra nós mulheres é violação de nossos direitos humanos. De acordo com Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora da ONU mulheres, esta violência é a mais tolerada no mundo.

Não permitamos que continue sendo.

--

--

Marília Saldanha

Mestra e Doutora em Psicologia Social com viés feminista. Escritos sobre relações de gênero e cotidiano. Contato profissional: mariliasaldanha50@gmail.com